quarta-feira, 1 de junho de 2011

Exame periódico de saúde: controvérsia



Partilho neste post um texto escrito por um grupo de Médicos de Família a propósito de um artigo do jornal Público: Orientação sobre frequência de exames médicos gera protestos de especialistas


Concordo inteiramente com os colegas: mais do que critérios económicos, são critérios científicos que devem guiar as escolhas de exames complementares de diagnóstico nas chamadas "consultas de rotina" (tecnicamente: exame periódico de saúde). Na verdade, os exames médicos podem ter vantagens, mas também podem ter riscos e malefícios, sobretudo se aplicados mais frequentemente e em idades mais jovens do que o recomendado. Muitas vezes, o especialista em Medicina Geral e Familiar desempenha o papel de provedor do paciente, partilhando a informação sobre os benefícios e os riscos de determinados procedimentos para em conjunto se tomar a decisão. Na verdade, não é tanto uma "questão de poupar" (como se isso fosse mau), mas é mais uma questão de proteger a saúde do paciente evitando danos desnecessários que lhe podem ser causados por testes, exames, rastreios desnecessários... Mesmo que isso vá contra a corrente de uma certa opinião pública ou de outros especialistas...

O documento da USF Marginal referido no texto está disponível aqui.
O documento do ACES Lisboa Norte que deu origem ao artigo do Jornal Público está disponível aqui.


Eis o texto:
«O Agrupamento de Centros de Saúde de Lisboa Norte (ACES-LN) divulgou junto dos seus profissionais um conjunto de recomendações sobre avaliação periódica de pessoas saudáveis. Esse documento foi objecto de críticas por parte de responsáveis de três prestigiadas organizações médicas portuguesas nas áreas da oncologia, cardiologia e diabetologia. Dessas críticas deu notícia o "Público" no dia 20 de Maio último (texto em anexo). Esses especialistas transmitem ainda a sua opinião quanto à população abrangida e periodicidade dos gestos propostos nessas recomendações. De um modo geral os referidos especialistas propõem intervenções que atingem mais pessoas e são executadas com maior frequência. Um deles diz compreender "que é preciso poupar"; outro sugere que na base das recomendações existem critérios "economicistas" e que aquelas terão sido escritas "numa perspectiva dos médicos de saúde pública, que são os que não vêem os doentes".

Acontece que o documento divulgado pelo ACES-LN é um trabalho realizado pelos médicos de família da USF Marginal, em Cascais, e por estes distribuído junto da população por eles servida. São médicos com actividade clínica diária, estão envolvidos em actividades formativas e de investigação e têm carreiras profissionais e académicas prestigiadas. As recomendações por eles redigidas e disseminadas no ACES-LN têm como base a melhor e mais robusta evidência científica disponível hoje. O mesmo não pode ser dito das recomendações dos três especialistas citados na notícia, aparentemente assentes na sua experiência pessoal e sem indícios de qualquer fundamentação.

Este fenómeno não é novo nem exclusivo de Portugal. Os especialistas de topo lidam com situações clínicas mais graves e complexas, o que os leva a endurecer a sua atitude na luta contra as doenças das suas áreas de especialização. As organizações que os representam tendem a propor mais exames, a mais pessoas e com menores intervalos entre as observações. Essa atitude, ainda que compreensível, não tem muitas vezes suporte científico consistente; pelo contrário, sabe-se que o excesso de exames resulta em aumentos por vezes dramáticos do número de pessoas erradamente diagnosticadas como tendo um problema de saúde; esses diagnósticos em excesso, conhecidos como falsos positivos, resultam em mais exames, quase sempre mais agressivos, em ansiedade escusada para as pessoas afectadas e, em algumas situações, em tratamentos de resultado no mínimo duvidoso. Fazer muitos exames e muitas vezes pode fazer mais mal que bem à saúde.

Ao contrário do que é sugerido pelos especialistas referidos na peça do Público, não são motivos económicos mas clínicos e técnicos que estão na base das recomendações efectuadas. Trata-se não de poupar dinheiro, mas de oferecer às pessoas o melhor que a ciência oferece, sem nunca se perder de vista que essa ciência tem limites. As referidas recomendações, repetimos, estão ancoradas no melhor conhecimento científico presente. Devem ser aplaudidas e disseminadas.

Armando Brito de Sá

Médico de família e professor da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa
Jaime Correia de Sousa
Médico de família e professor da Escola de Ciências da Saúde da Universidade do Minho
José Augusto Simões
Médico de família e professor da Escola Superior de Saúde da Universidade de Aveiro

Luís Filipe Gomes
Médico de família e professor do Departamento de Ciências Biomédicas e Medicina da Universidade do Algarve

Luís Rebelo

Médico de família e professor da Faculdade de Medicina de Universidade de Lisboa
Isabel Santos
Médica de família e professora da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa 

Vasco A. J. Maria
Médico de família e professor da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa»

3 comentários:

  1. Olá, meu nome é João Marcio Berto e sou médico de Família e Comunidade em Belo Horizonte, Brasil. Partilho essa idéia de reduzir as consultas "de rotina" e os "exames periódicos", porém teremos um longo caminho pela frente na educação da população sob nossa responsabilidade. Seria importante conseguirmos ter a mídia do nosso lado. Porém o poder econômico estará sempre do "outro lado".

    ResponderEliminar
  2. Obrigado, João Marcio Brito pelo seu comentário! O caminho é longo, mas não devemos nem podemos desanimar :)

    ResponderEliminar
  3. A educação passa obrigatoriamente pela confiança estabelecida na relação médico doente e pela clareza como exprimimos o que pensamos. O caminho é longo mas faz-se caminhando...

    ResponderEliminar

Comente, partilhe, participe activamente neste blogue :)